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O legado humaníssimo de Vargas Llosa (1936-2025)

 

Francisco José Viegas

 

E, então, foi o boom. Na altura eu teria 14 anos, ou um pouco mais, e li Cem Anos de Solidão com a impressão de que o mundo tinha sido escurecido de repente por um relâmpago. Generais loucos ou apenas ensandecidos pelo álcool e pela glória, borboletas atordoadas, nuvens de insectos, bruxas amáveis, fuzilamentos, mortos que se erguem da terra e descansam no adro das aldeias, tudo podia acontecer naquele vale onde o Verão, no Douro, chegava como se todos estivéssemos na América Latina, onde alguém tinha escrito Pedro Páramo. E era essa onda – a que vinha de Borges, de Rulfo, de García Márquez, depois de Cortázar, de Oneti e de Vargas Llosa. Não sabíamos, nenhum de nós, os leitores daquele tempo, que aquilo era possível, pelo menos daquela maneira.

 

Porém, quando assistimos à conversa entre Santiago Zavala e Ambrósio, no bar A Catedral, em Lima, percebe-se que está ali uma diferença. Se uma das marcas essenciais dessa geração de autores que deixaram de ser regionalistas da América Latina era olharem de frente «o cânone» e não fazerem uma genuflexão quando ouviam o nome das divindades realistas-socialistas, Vargas não só mostra como as ditaduras, os generais e os poderosos tomaram conta daquela rede de países (como já o tinha feito em A Cidade e os Cães, de 1963), como o faz sem subir ao púlpito e cair na tentação do sacerdócio. Ele mostra. Mostra isso em A Conversa n’A Catedral com aquela pergunta inicial de Santiago Zavala, “quando é o Peru se fodeu?” O resto do livro está dedicado a explorar os andaimes daquele traste paquidérmico, habituado a militares e a ditadores.

 

Não vale a pena explicar como depois deste livro a vida de Vargas mudou bastante e, quando regressou, alguns anos depois (em 1971 escreveu a tese sobre García Márquez, História de um Deicídio, que pode ser também lido como uma investigação sobre a arte do romance, porque a cada romance Deus morre um pouco) é um homem muito mais divertido. É a década de Pantaleão e as Visitadoras e de A Tia Júlia e o Escrevedor, joias e deliciosas de autobiografia e erotismo, elogio da literatura e do divertimento. Mas há-de regressar à América violenta numa releitura do episódio apocalíptico de Canudos, no Brasil (A Guerra do Fim do Mundo), mostrando o confronto entre as forças da terra e os militares, sempre eles; na história de Trujillo (em A Festa do Chibo, um inventário em dois tempos dos demónios latinos, o poder das armas e o machismo); ou no relato da queda do governo de Jacobo Árbenz na Guatemala e no continuado papel dos EUA para dominar a América central, em Tempos Duros. Este livro é já de 2019, é um segundo inventário da misoginia e da manipulação políticas, e mostra como o liberal-democrata Vargas Llosa não se tornou maleável nem esqueceu as ventanias da História e a arqueologia da humilhação daqueles países. Quase “ninguém” esperava que o fizesse, porque lhe tinham imposto a coroa de espinhos do traidor – o escritor que vivia na Europa (Barcelona, Madrid, Paris, Londres) e que abandonara a devoção a São Fidel. Sim, há os “trios amorosos” de Cinco Esquinas, um retrato do poder de Fujimori sobre os tablóides peruanos, triunfo da meia idade llosiana, depois da tremenda biografia de Roger Casement, o cônsul inglês no Congo (O Sonho do Celta), que denunciou o terror do colonialismo belga e do racismo: esse fascínio de Vargas pelas personagens que arriscam tudo marca-o para sempre. Zavala na Conversa n’A Catedral, Lituma devorado pelos Andes, o Conselheiro na Guerra do Fim do Mundo, Felícito Yanaqué em O Herói Discreto, uma espécie de súmula de quase todos eles – o herói pequeno-burguês, sem nada de heróico, mas capaz de resistir à extorsão, às ameaças, à corrupção da velha e da nova América Latina.

 

Uma vida assim tem uma conclusão quase perfeita em Dedico-lhe o Meu Silêncio, o último romance (2023), que é um relato simples sobre a busca da música em plena campanha do terrorismo peruano, nos anos noventa – muitas vezes seremos Toño Azpilcueta em busca do mago do violão crioulo, Lalo Molfino, para iluminar o que nos resta. É um legado humaníssimo. Talvez Vargas tivesse alguma vez visto um relâmpago a escurecer a terra toda e quisesse deixar a música como um dos derradeiros legados – valsas, marineras e uma orquestra para ajudar a enfrentar o tempo.