MOSTRA | 1 jun. - 18 ago. '23 | Sala de Referência - Piso 1 | Entrada livre
A mostra - Continuo a ser aquilo que ninguém espera - assinala o centenário do nascimento de Mário Henrique Leiria (1923 –1980) destacando a diversidade da sua produção e partindo das suas próprias palavras e traço.
Pintar, desenhar, agatanhar ideias e procurar coisas introduz este universo pela mão do próprio, através do traço de Auto-retrato e da palavra registada na nota biográfica em carta a Hélia de Medeiros e Joachin Peters. A partir daí vão surgindo composições ficcionais de genologia diversa, em simultâneo com a teorização do pensamento estético patente no 1º Manifesto do Sobreporismo. Assim se abre caminho à aproximação das Actividades da movimentação surrealista em Portugal, dado que o autor se considera um surrealista anterior a qualquer aparecimento de grupos mais ou menos surrealistas surrealizantes ou surrealistas mesmo (carta a Mário Cesariny e aos outros). A sua produção neste contexto integra Cadavres-exquis com Carlos Calvet e diálogos automáticos, bem como o 1º Manifesto da Rua da Escola «contra as aves de capoeira» redigido por Mario Henrique com o acôrdo de mais cinco ou registos fotográficos da 1ª Exposição dos Surrealistas.
O núcleo A chateação continua – porque objectos, colagens, escrita automática, desenhos em estado de libertação, poemas, não-poemas, etc. são mais reais, muito mais absolutamente reais do que qualquer forma exclusivamente plástica (carta a Mário Cesariny e aos outros) – mostra a coabitação entre linguagem plástica e verbal na obra de Leiria. Isto se verifica através da composição de colagens ou desenhos juntamente com recurso à palavra, por vezes tornando-os num só traço - como em Maternidade; ou na produção de composições híbridas, apesar da presença assídua da poesia, como Pas pour les parents, Climas ortopédicos ou Claridade dada pelo tempo.
Pois claro que ainda não morri dá conta do período em que Leiria esteve casado (1958-61) e permaneceu no Brasil. Regressado em 1970, só em 1973 vê os Contos do gin-tonic publicados. A este propósito lê-se em carta conservada no seu espólio: entretanto aconteceu-me uma treta: uma editora (a Estampa) pegou-me num monte de papéis e zás, publicou-me um livro (contos amargos, brutais, cruéis, trocistas, avacalhadores, sei lá) (carta a Abílio – E22/96). Seguem-se Novos contos do gin, republicado em 1978 com o acrescento das Fábulas do próximo futuro registando nesta edição a advertência ao leitor: espera o autor, convicto, que as Fábulas fiquem apenas por fábulas. No entanto, está a pau. Não desiste. Sempre a pau. Estas fábulas vão surgindo dispersas, até então, em jornais («Pé de Cabra», «O Coiso»). Imagem devolvida: poema-mito e Conto de Natal para crianças são publicados em 1975. No ano seguinte, Casos de direito galático. O mundo inquietante de Josela: fragmentos foi publicado, com ilustrações de Cruzeiro Seixas e, em 1979, Lisboa ao voo do pássaro, em co-autoria com João Freire.
Mário Henrique Leiria autodefine-se como um resto definitivamente avariado de homem em zanga permanente, com um riso discretamente amargo de vez em quando e um olho sempre disposto à troça solitária (carta a Luís Amaro) que tem escritos vários acumulados por todos os cantos mas, com grande desgosto da dignidade oficial, não é nada que se preste a tornar os homens mais felizes e mais gordos (carta a Mário Cesariny). Não obstante, o autor destas afirmações revestidas de ironia ácida é o mesmo que faz conviver sob o teto da sua obra o poético dos versos:
deixa que eu fique
muito afastado
silencioso e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir.
continuando, assim, a ser aquilo que ninguém espera.