Armando Luís de Carvalho Homem
Repetidamente tenho dito que, não tendo sido, no sentido escolar do termo, aluno de Oliveira Marques, o considero, no entanto, um dos Mestres que tive, um dos grandes responsáveis, além do mais, pela minha opção pela História Medieval quando, há cerca de três décadas e meia, houve que escolher tema para a tese de licenciatura, passo de carreira então existente nas Faculdades de Letras.
Tive o ensejo de frequentar a mais recente daquelas Escolas, a da UP, que na actual fase remonta ao ano lectivo de 1962/63. E acontece que iniciei o meu percurso discente pouco depois de alguns dos mais altamente classificados dos primeiros licenciados da Escola terem nela iniciado funções como Assistentes. Não estava nas tradições daquela juvenil Casa de jovens Mestres qualquer censura bibliográfica: citavam-se estrangeiros de claro perfil ideológico que alhures seria considerado, no mínimo, suspeito, de Marx/Engels a Proudhon, a Max Weber, a Émile Dürkheim ou a Werner Sombart nas Ciências Sociais e de Marc Bloch a Edward R. Palmer, a Earl J. Hamilton, a Georges Lefebvre, a Albert Soboul ou a Jacques Godechot, entre muitos outros, na Historiografia; e entre os nacionais podiam citar-se Mestres assumidamente desafectos ao Regime (caso de Luís de Albuquerque) ou historiadores que nunca foram professores universitários em Portugal (caso de José-Gentil da Silva), ou só mais tarde o vieram a ser (como Joel Serrão) ou então se encontravam ao tempo banidos do Ensino Superior do nosso País (casos de Magalhães Godinho ou de Oliveira Marques). Foi pois assim, Sr.as e Srs., que no ano lectivo de 1969/70 (o 2.º da licenciatura) pela primeira vez ouvi falar de ANTÓNIO HENRIQUE RODRIGO DE OLIVEIRA MARQUES, e logo em duas disciplinas: História Medieval de Portugal e História da Expansão Portuguesa.
A primeira, com esta designação que 1 ano antes substituíra a preexistente História de Portugal I, era ao tempo regida por um S. antigo aluno na FL/UL, que depois não seguiria carreira na Escola, ficando antes conhecido como longevo autarca, concretamente no município da Maia. Refiro-me ao já desaparecido Dr. José Vieira de Carvalho, que, faço questão de salientar, antes dessa sua viragem para a política autárquica foi indiscutivelmente um docente com méritos. Citou-nos o Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa (de que corria a 1.ª ed.: 1964), A Sociedade Medieval Portuguesa (também em 1.ª ed. – 1964 – mas aparecendo a 2.ª logo em 1971) e os Ensaios de História Medieval (também em 1.ª ed.: 1965).
A segunda das mencionadas disciplinas tinha dois responsáveis: o Doutor Luís António de Oliveira Ramos – também lic.º pela FL/UL e aí tendo iniciado carreira em 1962 – e o Doutor Eugénio dos Santos; ambos fizeram carreira na Casa, estando o primeiro hoje aposentado depois de, entre outras coisas, ter sido, nos anos 80, Reitor da UP; e o 2.º é o actual decano do Departamento de História e jubilar-se-á dentro de meses. Os 2 incluíam na Bibliografia da disciplina em causa, a recente 2.ª ed. (1968) da Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. Posso dizer que, de entre as Obras de Oliveira Marques, foi esta então a mais decisiva em termos de influência exercida: pela simples razão de que, estando eu ao tempo particularmente motivado pela História Económica – sobretudo Rural –, via aquele livro abordar à nossa dimensão problemáticas que, em termos europeus ocidentais, eu encontrava tratados tal como nas Obras de um Marc Bloch, de um Michael M. Postan, de um Bernard H. Slicher van Bath, de um Édouard Perroy, de um Georges Duby, de um Robert Fossier ou de um Guy Fourquin, entre outros que, no mesmo ano, me foram referidos em História da Idade Média.
Acasos de escolha de tema acabaram por me conduzir não à História Rural da nossa Idade Média, mas antes à Diplomática Régia e à História dos Poderes. Mas Oliveira Marques – longos anos regente de Paleografia na FL/UL (1957-1964), autor da entrada «Diplomática» (e outras correlacionadas) do Dicionário de História de Portugal (1963) e co-autor de um Álbum de Paleografia (1987), recorde-se – permaneceu-me como essencial referência da nossa Historiografia. Só o conheci pessoalmente em Maio de 1974, por ocasião de uma conferência sobre Teófilo Braga que foi proferir numa Casa de nobres tradições intelectuais e cívicas como o Ateneu Comercial do Porto. Uma relação cordial se foi estabelecendo e, pela minha parte, de grande admiração, já não só pelo Intelectual, como pelo Cidadão e pela Individualidade, frontal sempre que indispensável: fosse na FL/UL nos anos 50 e 60; na Biblioteca Nacional, de que foi Director, nos idos de 74 e 75; ou na FCSH/UNL, que ajudou a fundar e que em mais de um momento dirigiu, dos anos 70 aos anos 90; para já não falar de inúmeras entrevistas que foi dando ao longo da sua carreira e que em mais que uma circunstância acabaram por ficar registadas em livro.
Para além de tudo isto, Oliveira Marques acabou por estar presente em praticamente todos os passos do meu percurso académico:
a) Foi membro do júri das minhas provas de doutoramento (1985) e arguente da tese;
b) pertenceu ao júri do meu concurso para professor associado (1989) e foi relator do CV;
c) esteve no júri das minhas provas de agregação (1994) e arguiu o meu currículo;
d) e apenas ponderosas razões de saúde o impediram de integrar, em 1997/ 98, o júri do meu concurso para professor catedrático.
Da admiração de um jovem estudante e depois assistente por um Mestre consagrado se foi evoluindo para a estima recíproca entre dois oficiais do mesmo ofício e da mesma família intelectual e cívica, ainda que pertencendo a gerações diferentes: 17 anos nos separam etariamente. Com toda a lógica colaborei nos dois volumes miscelânicos que em 1982 assinalaram os seus 25 anos de vida universitária; e ajudei a coordenar (com Maria Helena Coelho) o livro que em 2003 marcou a sua jubilação e onde, para além do percurso biográfico, se traçou o perfil do medievista, do paleógrafo, diplomatista e coordenador da edição de fontes documentais, do estudioso da nossa Expansão, das relações luso-alemãs, da Maçonaria, da I República, do autor de obras de síntese, do director de realizações colectivas, do Historiador da Historiografia ou, finalmente, do filatelista e estudioso da História da franquia postal; e de salientar que nesta Obra colaboraram dois Colegas espanhóis e um alemão.
Quando conhecemos e admiramos Alguém há bastante tempo – 32 anos, como é o meu caso para com Oliveira Marques –, poderemos às vezes julgar já saber tudo sobre a Pessoa em causa e sobre os seu modus agendi na vida pessoal, profissional e cívica. Mas às vezes surgem surpresas, como quando alguma fonte até então inédita nos confirma o retrato daquele que admiramos mas com umas cores acentuadamente mais intensas. A que quero referir-me ? O lente de Literatura Latina da FL/UL, antigo Reitor da UL (1979-1983) e antigo leader da CAP, deputado e eurodeputado Doutor Raul Miguel Oliveira Rosado Fernandes publicou há meses um volume que intitulou Memórias de um Rústico Erudito. Viagem à volta de lentes, terras e políticos [1]. Apesar de ideologicamente distante, num sentido acentuadamente conservador, como já veremos, foi – e julgo que continua a ser – Amigo de Oliveira Marques, de quem foi também Colega na FL/UL nas décadas de 50 e de 60 (é alguns anos mais jovem); e refere-se-lhe com muita simpatia:
«Fui colega (…) de Oliveira Marques, discípulo de Kellenbenz, então em Würzburg, e que, como historiador medieval, abriu muitos caminhos para a compreensão da historiografia portuguesa. Fora sempre extremamente dotado, primeiro em Filatelia, imagine-se !; era metódico, com as ideias arrumadas e tinha uma capacidade de análise que, quando longe da paixão ideológica ou corporativo-maçónica [sic], era de uma imparcialidade digna de respeito. Veio a ser vítima das más vontades que se levantaram à sua volta, que lhe espiolharam a vida privada, e que por motivos ditos políticos, o levaram a ter de ir ensinar para Auburn, no Alabama» [fim de citação] [2].
Ora, tal como Oliveira Marques, também Rosado Fernandes, anos depois, em 1968, já doutorado, teve um grave dissabor profissional que lhe ditaria uma interrupção de 4 anos de exercício na FL/UL. No ano em causa, ao regressar de uma estadia de 3 anos como professor visitante numa Universidade norte-americana, nos termos de um protocolo que envolveu a dita Universidade, a UL e a Gulbenkian, e depois de ver a pessoa de quem academicamente dependia – um lente de Filologia Clássica que era ao tempo o único catedrático do Grupo em causa daquela Faculdade – começar a não responder às suas cartas, viu rescindido o contrato como 1.º assistente da ALMA MATER, isto por decisão do Conselho Escolar; a justificação do proponente – o lente em causa – era a prolongada ausência do País de Rosado Fernandes, num Grupo com falta de docentes; e quem propôs tal coisa soube aproveitar uma ausência de Lisboa de Orlando Ribeiro e de Lindley Cintra – que supostamente apoiariam a eventual vítima – e da cumplicidade de alguém que não perdoava a Rosado Fernandes a sua solidariedade com Oliveira Marques em 1964 [3]. Espantosamente, o Reitor da UL – um físico de renome – despachou sem mais, sem ouvir o atingido e esquecendo que a Reitoria tinha responsabilidades no ‘crime’, a estadia nos EUA por 3 anos e não por apenas 1, como inicialmente previsto.
Os absurdos da estória não ficam por aqui: o dito lente classicista reclamava-se de laico, desafecto ao Regime vigente e (pasmai, Senhores !) admirador de Afonso Costa !!!! Sem embargo, e independentemente dos seus méritos intelectuais, esteve sempre com as facções mais conservadoras e retrógradas da Universidade portuguesa. E era uma «fera», no trato com alunos e assistentes. Na década de 40 ensinara na FL/UC, de onde regressou em 1952. Não sei o que por lá se terá passado, mas o que sei é que não mais esta Escola o convidou para júris !...
É claro que Rosado Fernandes teve solidariedades: as esperadas de Lindley Cintra e de Orlando Ribeiro (que numa carta de 1967 se refere ao lente classicista como «o Bola de Unto») e também a de Oliveira Marques: numa carta expedida de Gainesville (Florida), onde então ensinava, este último escreveu, em Março de 1968:
«Dizes-me que tencionas lutar… Não o faças ! Em primeiro lugar, não vale a pena. Sempre que um catedrático se alça contra um assistente na Faculdade de Letras de Lisboa e lhe retira a sua “graça e mercê”, o assistente está liquidado e não volta, pelo menos até que o catedrático morra ou se reforme. Exemplos entre muitos: Saraiva contra Nemésio, Godinho contra Heleno, eu contra Rau, Irisalva contra Heleno, Morais Barbosa contra Cintra. Coimbra, se te desse qualquer apoio, seria apenas até determinado limite, porque para eles (como para os de Lisboa) acima de tudo está o respeito total, absoluto, pela hierarquia e pelo status quo. Sobre isso nunca nos devemos enganar» [4].
Como argumentação e como segurança de fundamentação esta passagem é de antologia ! E atenção, Sr.as e Srs., quem escreve não é nenhum veterano rabugento, é um jovem universitário de apenas 34 anos, mas já com 11 de experiência profissional e quase 8 decorridos sobre o seu doutoramento.
Oliveira Marques era assim ! Oliveira Marques é assim ! E «que nunca as mãos lhe doam», mormente pela escrita, neste chamar «os bois pelos nomes» quando as circunstâncias o exigem. A admiração extreme dos seus amigos indefectíveis pode passar também pelo conhecimento de tomadas de posição como esta, face aos «Bolas d'Unto» que continuem a existir nas nossas Universidades e na Vida Intelectual portuguesa em geral.
Muito Obrigado
Notas:
[1] Lisboa, Edições Cotovia, 2006.
[2] Op. cit. na n. anterior, p. 87.
[3] Op. cit. nas nn. anteriores, pp. 162-163.
[4] A. H. de Oliveira MARQUES, carta a Raul M. Rosado Fernandes, publ. em Op. cit. nas nn. anteriores, pp. 164-165. «O Bola d'Unto» aposentou-se prematuramente em 1970, por motivos de saúde. Em 1972 a UL abriu concurso para vagas de professor extraordinário de Filologia Clássica. Rosado Fernandes candidatou-se e foi aprovado («…até que o catedrático morra ou se reforme», escrevera Oliveira Marques…). Atingiu a cátedra em Dezembro de 1974. Foi Reitor da UL – o último de nomeação ministerial – de 1979 a 1983. O seu sucessor – o 1.º eleito na UL desde a I República – foi o Doutor José Manuel Gião Toscano Rico (lente de Medicina, Reitor 1983-1986).
(texto da intervenção na Biblioteca-Museu República e Resistência, em 11 Dez. 2006)