Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)
António GuerreiroVARIAÇÕES
Até ao fim da minha vida haverá sempre
na face das encostas uma nascente.
Depois da minha morte ainda haverá
quem beba na colina a água
a nascer.
Quatro elementos hão-de ficar aqui
até ao tempo do Fim.
Gostaria que na palavra «poetisa» não estivessem depositados alguns traços que limitam e retiram grandeza a quem é assim designado. Se fosse capaz de resgatá-la aos estereótipos e afectações que nela se incrustaram, utilizá-la-ia para falar de Fiama Hasse Pais Brandão, para a integrar numa nobre linhagem feminina de escritoras, poetas, pensadoras do século XX. E estou-me a referir a umas poucas mulheres que ousaram um «esforço da voz», sob a forma da poesia, mas também de outras experiências de escrita, elevando-se a um nível da criação literária e intelectual que as torna habitantes de um outro mundo. Para classificar estas aristocratas da perfeição e do absoluto (de que fazem parte uma Ingeborg Bachmann e uma Simone Weil; e, mais perto de nós, uma Maria Gabriela Llansol) gostaria de me servir de uma categoria inventada por um insigne membro da família, a escritora italiana Cristina Campo: imperdoáveis.
Fiama é, neste sentido, uma imperdoável: por uma certa estranheza em relação ao contexto, por uma posição algo excêntrica, ainda que no centro do seu tempo (a noção nietzschiana de «inactualidade» decifra este aparente paradoxo), pela capacidade de redesenhar e ampliar os confins da experiência e de agir no interior da esfera da língua de modo a nomear e a dar voz ao que permanecia mudo. A poesia de Fiama tem a capacidade de dar a ver o Todo numa chávena de chá e a criação do mundo no trabalho do podador. E, recuperando esta ligação com o Todo (uma fusão determinada pelas leis da harmonia e por uma pulsão de conhecimento), a poesia de Fiama opera um reencantamento do mundo sem deixar de ser absolutamente moderna. Digamos, antes, que segue a lição de uma «metafísica humilde» e da percepção subtil, tornando-se assim uma infinita leitura do real em chave simbólica, abertura do finito ao infinito, proliferação de imagens (há nela, por vezes, uma concepção barroca do mundo), ampliação e multiplicação da realidade. Num depoimento publicado em Um Século de Poesia (Assírio & Alvim, 1988), Fiama explicou como chegou a esta sua «metafísica humilde»: «A minha poesia situou-se, de início, na encantada leitura, por exemplo, de José Régio. Dele dramatizei o poema ‘O Poeta, o Vitral e a Santa Morta’. Pouco depois, impelida pela universidade, acreditou no engano ledo e cego da inflamada ideia de progresso em cultura, que obcecou vanguardas loucamente velozes e devoradoras. Abandonou, depois, as epistemes políticas ou literárias, e anda por aí, quod nihil scitur, cheia de metafísica humilde, sempre a dizer o mesmo, o mesmo, talvez por outras palavras e modos.» Recordemos que «Quod nihil scitur» é o título de um poema já do final dos anos 80 que retoma o texto de abertura da sua obra poética completa, a Obra Breve (Assírio & Alvim, 2006): «Água significa ave isto é/ a forma de exprimir a parte míni/ ma das essências. Diminuir a área da/ imagem. Mas profusa. Separando/ nomes. Dividir o abstracto/ em fotões. Nomear, para viver/ parcimoniosamente na literatura.»
Fiama aflora neste poema uma teoria dos nomes e da essência linguística das coisas que ganha alguma evidência noutros momentos. Não esqueçamos que foi uma estudiosa da influência da Cabala nalguns autores da literatura portuguesa e se interessou pela mística judaica. De resto, esta teoria da nomeação (que é também uma maneira de acolher o «mundo quedo», de lhe dar hospitalidade e de habitar a pátria originária da língua) acaba por funcionar como uma resposta ao textualismo, ao materialismo verbal que serviu de alimento teórico a muita poesia do seu tempo. Recordemos que Fiama integrou, com Morfismos, o conjunto de cinco «plaquettes» que constituíram a «Poesia 61». As outras quatro eram de Gastão Cruz, Maria Teresa Horta, Casimiro de Brito e Luiza Neto Jorge. O estudo da inscrição geracional de Fiama não é certamente um trabalho inútil e sem objecto, na condição de descobrir desde o princípio - pelo menos em germe - a sua vocação excêntrica, no sentido em que utilizámos a palavra no início deste texto. Certo é que Fiama atravessou quatro décadas da poesia portuguesa numa posição soberana em relação a ideologias e saberes constituídos. Para acedermos à sua «poética», não bastam as categorias tradicionais. Lirismo, subjectividade, representação, real, símbolo, nome, etc. - a poesia de Fiama põe tudo isto em jogo, mas de maneira altamente complexa, não se submete a grelhas, reclama uma leitura que faça uso de saberes e conceitos à altura da sua posição excêntrica e que saibam reconhecer um catálogo de virtudes ligadas à verdade, à beleza, à atenção, à hospitalidade, à graça, à subtileza, à agilidade.
Foi com exigência semelhante que Fiama percorreu a tradição literária. Desse trabalho de leitura resultaram alguns ensaios; mas resultou também um diálogo fecundo com a história literária, sem a compreensão do qual muitos dos seus poemas não podem ser adequadamente lidos. E resultou ainda um trabalho de tradução (dos Hinos à Noite, de Novalis, do Cântico dos Cânticos, por exemplo), a acrescentar ao de dramaturga e prosadora. A obra de Fiama é plural. Mas, no centro, está a poesia, à qual, como disse Eduardo Lourenço, não falta reconhecimento, falta apenas que comece a ser lida.