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Machado de Assis (1839-1908)

MOSTRA EVOCATIVA  | 1 de Setembro a 11 de Outubro de 2008 | Sala de Referência | Entrada livre


foto_machado_assisNascido no Rio de Janeiro, onde viria igualmente a falecer, Joaquim Maria Machado de Assis acedeu, do morro pobre onde morava o filho de operário mestiço, à condição de burguês instalado e, de operário tipógrafo, à burocracia de empregos públicos tal como, do autodidactismo explorado em múltiplas direcções, atinge o reconhecimento de maior escritor oitocentista brasileiro.

Novelista exímio, no romance como no conto, começou a carreira literária, normal na cultura romântica, como poeta e autor de peças teatrais. Já numa fase realista, escreve as suas principais obras de imediata e grande projecção, nomeadamente em Portugal, entre a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899), mediados por notáveis livros de contos como Papéis Avulsos (1882) e Várias Histórias (1896).

A Biblioteca Nacional de Portugal assinala o centenário da morte do notável escritor brasileiro e um dos mais significativos autores de Língua Portuguesa com uma mostra evocativa que decorre no mês em que se assinala aquela efeméride.


Sugestões de leitura - Trechos de ficção de Machado de Assis

Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. […]

E, para começar, emendemos Séneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas porque não acrescentou ele, que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinquenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isto que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; porque não há-de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?

 

O empréstimo (conto)
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- Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.
- De preto?
- Justamente; lá vai entrando; entrou.
- Não ponha mais na carta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma sua recordação de outro tempo, e não há-de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz.
- Deve ter quarenta e seis anos.
- Ah! Conservada. Vamos lá; deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo. Está viúva, naturalmente?
- Não.
- Bem; o marido ainda vive. É velho?
- Não é casada.
- Solteira?
- Assim, assim. Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim.
- Por exemplo, ao senhor.
- Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Baía, donde viera em 1859. Era bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e resignada; quando os conheci, tinham uma filhinha de dois anos.
- Apesar disso, a Marocas…?
- É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem pressa, conto-lhe uma coisa interessante.

Singular ocorrência
(conto)
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Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplastro no cérebro; trazia comigo a ideia fixa dos doidos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espectáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem que já morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes.

Não era impossível, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um século, e a figurar nas folhas públicas, entre macróbios. Tinha saúde e robustez. Suponha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de coligir os elementos de uma instituição política, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens.

Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a anónima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação à semelhança das cegonhas do Ilisso… Tinha então 54 anos, era uma ruína. Uma imponente ruína. Imagine o leitor que nos amámos, ela e eu, muitos anos antes e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova…

Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap.V (romance)
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Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a mor parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.
Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar de um século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse…
- Não há que explicar, disse eu.
- Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as do Ezequiel. Que houve entre vocês?
- Não ouviu o que lhe disse?
Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira tudo claramente, mas confessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da reconciliação; por isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. Sem lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do final do capítulo.
- O quê? perguntou ela como se ouvira mal.
- Que não é meu filho.

Dom Casmurro, Cap. CXXXVIII (romance)