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Biblioteca Nacional de Portugal

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Horário

2.ª - 6.ª 09h30 - 19h30

sáb. 09h30 - 12h30 (durante o estado de emergência nacional)

 

 

 

Folha de sala

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A poesia de Amália

MOSTRA | 15 out. - 15 dez. '20 | Sala de Referência | Entrada livre

 

> A visita à Mostra obriga à desinfeção das mãos e à medição da temperatura à entrada do edifício e ao uso de máscara até à saída das instalações

 

 

No início de 1959 Amália faz mais uma temporada no Olympia, em Paris, com brilho incontestável de vedeta internacional – a revista Variety considera-a nesse ano uma das quatro maiores cantoras do mundo.


Numa dessas noites apresenta-se
nos bastidores um rapaz que lhe oferece uma melodia. Tem trinta anos e chama-se Alain Oulman. Nem ele nem Amália podiam supor que deste encontro nasceria a mais original e profícua relação conhecida entre a poesia clássica e a música popular.


É verdade que Amália já antes tinha cantado alguns poetas portugueses seus contemporâneos, como Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo ou Sidónio Muralha, e que a sua própria maneira de cantar já era uma poética em si – basta para isso ouvir a quase belcantista acentuação que dava à frase ou como nunca repetia um refrão de forma mecânica. Mas nunca um cantor popular conseguiria, como Amália – na maior parte das vezes, com a cumplicidade de Alain Oulman –, uma tão grande democratização dos clássicos da poesia através da música. Em poucos anos, Amália põe um povo inteiro não só a conhecer sonetos de Camões como a emocionar-se com eles, e inclui nos seus discos fados e canções com poemas de Mendinho, Dom Dinis, João Garcia de Guilhade, João Roiz de Castel-Branco, Bernardim Ribeiro…


Através desse arco projetado por Oulman e esculpido por Amália, o grande público descobriu um universo de novo requinte poético, que afinal tanto tinha em comum com o fado tradicional. Era uma forma elevada e intemporal de tratar o mesmo mistério.


Em 1965 era ultraje uma fadista cantar Camões. A polémica foi tal que chegaram a ser publicados na imprensa depoimentos contra e a favor e a montar-se um tribunal fictício na televisão para julgar Amália. Nesse programa, interrogada sobre se também pretenderia cantar o Camões épico responde: “Não sou nada épica. Nem bélica! Se não, acho que já teria batido em alguém.” Quatro anos antes de rebentar o escândalo, Amália tinha já cantado um soneto de Camões na televisão e pressagiado todo o estrondo de 1965. À pergunta sobre de quem eram os versos cantados respondeu apenas: “Estavam num livro…”


A ligação da cantora à poesia contemporânea também se desenvolve com a chegada de Oulman: José Régio, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, Ary dos Santos ou Cecília Meireles. Mas Amália canta mais poetas, muitos mais. Se alguns desses poemas são escritos de propósito para a sua voz, como a “Gaivota”, de Alexandre O’Neill, outros são “roubados” dos livros e até adaptados pela própria Amália, como o “Povo que Lavas no Rio”, de Pedro Homem de Mello. Uma aguda sensibilidade literária que culmina nalguns belíssimos poemas seus, muitos deles também cantados, sobretudo na fase final da carreira.


Outros poetas ficariam na arca dos inéditos da cantora, como Gil Vicente, Almeida Garrett, Mário de Sá-Carneiro, Teresa Rita Lopes ou Armindo Rodrigues.


E como se de poemas para ler se tratasse, Amália reservou muitos destes fados para a intimidade do disco. Na sua grande maioria, este repertório não fazia parte dos recitais ao vivo, que nesta altura aconteciam sobretudo no estrangeiro, com públicos que não entendiam português.


O imenso legado discográfico que nos deixa, testemunho da sua livre atitude poética e do universalismo da sua voz, inicia ainda hoje muitos dos seus admiradores no mundo da poesia portuguesa de qualquer tempo, e para todos os tempos.

 

Frederico Santiago